Saturday, December 31, 2005

BREVES COMENTÁRIOS A RESPEITO DA OBRA “OS SALTIMBANCOS”

BREVES COMENTÁRIOS A RESPEITO DA OBRA “OS SALTIMBANCOS”
Uma proposta de entretenimento infantil com pitadas de contra-cultura.

Em 1977 Chico Buarque de Holanda liderou um projeto audacioso: contar através de uma fábula musical – e adaptá-la ao momento histórico do Brasil – a obra dos irmãos Grimm, conhecida no mundo inteiro sob o título de “Os Saltimbancos”.
Para isso ele cuidou da parte da tradução e adpatação, deixando os arranjos por conta de Luiz Enriquez, que somados a um time que tinha Sergio Bardotti na direção musical e no texto, Sergio de Carvalho e o próprio Chico Buarque na produção, e com intérpretes de peso para as canções como Miucha, Ruy, Magro e Nara Leão, deu cor, forma, e um contorno político-social a obra dos irmãos Grimm, que durante toda uma geração foi visitada e revisitada, quer em formato musical, teatral ou cinematográfico (Vide Os Saltimbancos trapalhões, de Renato Aragão).
Mas, qual os motivos para abordar essa obra em um artigo de uma disciplina que visa a dar ênfase na formação de psicólogos para atuar na Educação Infantil? Como argumentar que uma obra de 28 anos atrás, época do início da abertura política, pode nos dias atuais concorrer com outras fascinantes mídias para o mundo infantil?
A idéia me surgiu por dois caminhos: primeiro enquanto pai (minha filha Yasmin tem um ano e quatro meses) e, segundo, despertado pela leitura de alguns textos da disciplina, que enfatizavam as transformações da abordagem educacional para crianças de zero a seis anos, no Brasil e no mundo, e, em especial, por dois textos que abordam o panorama cultural, ou a influência da indústria cultural nas creches e pré-escolas.
Em “Mas as crianças gostam! – Ou sobre gostos e repertórios musicais”, Luciana Esmeralda Ostetto traça um panorama de como músicas com apelo comercial são introduzidas na educação infantil, citando famigerados exemplos, como o de Xuxa, Kelly Key, Rouge, em que as crianças não só aprendem a canção, como também as respectivas coreografias.
Ostetto busca em suas memórias o percurso da aprendizagem de canções, com influências dos programas de rádio, que seus pais ouviam, passando pela aquisição de canções em missas, confrontando-os com os novos métodos utilizados pela industria cultural para seduzir e formar, desde cedo, pequenos e potenciais consumidores.
Músicas de sucesso são “fabricadas” mediante a uma forma e fôrmas já definidas pela indústria cultural, e navegam ao sabor do mercado, com a peculiaridade de serem produtos descartáveis.
Sobretudo, em um tempo onde o mantra do grupo formado por Silvio Santos entoado sobre a forma de “Aserehe ra de re/ Dehebe tu de hebere seibiunouba mahabi” já soa obsoleto, reflexo do aspecto descartável desse bem de consumo, lançar luz sobre uma obra de 28 anos atrás já é um sinal de resistência.
Em “A Industria Cultural Invade a Escola Brasileira”, de Eliziara Maria Oliveira Medrano e Lucy Mary Soares Valentim, aspectos de como a Industria Cultural vai ganhando cada vez mais espaço dentro das mais variadas áreas sociais são abordados.
As autoras citam Bárbara Freitag, que em uma leitura sobre autores que delimitam o conceito de Industria Cultural, como Adorno, Zuin, Ramos-de-Oliveira, afirma que “o produto (original ou reproduzido) da Industria Cultural visa entorpecer e cegar os homens da moderna sociedade de massa, ocupar e preencher o espaço vazio deixado para o lazer, para que não percebam a irracionalidade e a injustiça do sistema capitalista” (2001, p. 71).
E aponta meios midiáticos em que esses produtos são vinculados, com maior destaque para aquele que tem maior força no Brasil, a televisão. Contudo, aborda também outros meios de vinculação, inseridos nos materiais pedagógico-didáticos, consumidos por alunos de escolas, em especial, particulares, sob formatos de agendas, calendários, etc.
O que diriam os participantes d`Os Saltimbancos se soubessem que no futuro sua obra iria concorrer com esse contexto neo-liberal do capitalismo globalizado? Não se pode saber, mas decerto, já deixaram em sua obra muito do que precisava ser dito.







Os Saltimbancos – uma postura crítica em relação ao seu contexto histórico.

O disco d’Os Saltimbancos – que depois serviria de material para muitas adaptacões teatrais – em formato de LP chegou ao mercado brasileiro no ano de 1977. Nesse período a anistia política aos perseguidos pela ditadura estava começando a ganhar força, muitos artistas, pensadores, “formadores de opinião” estavam regressando ao país depois de tempos no exílio.
Junto com a eminente queda do regime dos militares, alicerçada na perspectiva de eleições diretas para presidência da república, e em todo um contexto mundial de pensamento político, que, ainda no auge da Guerra Fria, assistia a polarização entre o capitalismo e o socialismo, havia espaço mais que suficiente para os que estavam no rumo da contra-cultura disseminassem idéias e ideais de um modo alternativo de vida, ainda que calcadas em influências socialistas, tais como o fim da propriedade privada, a união proletária, camaradagem, e outros aspectos relacionados à política, e aspectos da cunho artísticos, com reflexos na música, teatro, artes visuais, etc.
Os Saltimbancos tem esse perfil em seu enredo, formado por quatro personagens centrais: O Jumento, a Galinha, o Cachorro e a Gata. Permite uma fácil assimilação pelo público infantil, para quem os animais podem representar figuras humanizadas .
No inicio da peça/ópera aparece o Jumento cantando sozinho, que “trabalha e não faz pirraça”, mas que “quando a carcaça ameaça rachar, que coices, que coices que (ele) dá”. É uma menção a exploração da força de trabalho do animal, que pode ser transportada facilmente para a exploração humana. O patrão dos animais, representando pela figura do Barão, que não aparece senão em terceira pessoa durante todo o enredo, é a simbolização da figura do capitalista, o patrão opressor. Ele não é acessível, não está presente, assim como não estão acessíveis as figuras que comandam o poder – seja ele político ou econômico. É a mão invisível do capitalismo.
O Jumento então encontra um cachorro que, condicionado pela forma de tratamento, mostra-se pronto, prestativo, pronto para servir o Jumento, como um gênio que, em liberto da garrafa, está pronto para servir ao seu amo: quando o Jumento, por exemplo, retruca que o cão não lhe deve obediência, pois o Jumento é um “pobre pau-de-arara”, o cão prontamente responde: “sim, senhor pau de arara”. E, em sua canção, descreve as atividades diárias e rotineiras de um cão: “apanhar a bola, estender a pata, sempre em equilíbrio, sempre em exercício”.
Os dois personagens encontram ainda a figura da Galinha, proletária de uma granja do Barão, em que a produção dos ovos e rigidamente controlada, com a galinha que não choca mais indo parar na granja (a Galinha usa metáforas que aludem ao cativeiro da granja com o Brasil nos tempos da ditadura: a gaiola é seu país).
Depois encontram a figura da Gata, onde nota-se toda uma configuração contra-cultural da personagem. A Gata é retratada como manhosa, fala gírias incompreensíveis, teve uma vida relativamente privilegiada, dormindo em almofadas e almoçando filés mignon, ou filés de gato, que eventualmente se envolvera em umas encrencas (em uma passagem como cantora). Ela é a representação da figura contra-cultural característica de uma época que ainda se inspirava nos movimentos de protesto sessentistas, como a dos participantes do movimento paz e amor, ou hippies Prega valores como a liberdade: “Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres”.
Os quatro juntos decidem primeiramente fugir, formar um conjunto musical e ir para um outro lugar, um lugar mítico representado pela imagem da Cidade. E eles tem diferentes idealizações do que poderia vir a ser a cidade, como de fato é representado na canção homônima: “A cidade ideal do Cachorro, tem um poste por metro quadrado, não tem carro, não corro, não morro, e também nunca fico apertado”, assim com a cidade ideal para a Galinha teria muitas minhocas, etc.
O Jumento é, não por acaso, o animal mais consciente. Verificando a afinação vocal dos seus músicos, consta que o trabalho como um grupo musical não será tão fácil assim. Cansados, procuram pernoitar em uma pousada, que é a pousada do Barão. Então, ao verem que não seriam bem-vindos, somam suas forças e põe “o Barão pra correr”.
Uma vez tomado o território, apoderam-se da propriedade, dividem funções, traçam um plano de combate para um eventual retorno do Barão, que de fato ocorre, mas no qual os animais são bem sucedidos. Implícita e explícitamente está a mensagem de que a união faz a força: somadas as garras da Gata, o bico da Galinha, os coices do Jumento e aos dentes do Cão, expulsam de vez o Barão e assumem em definitivo a casa. “Todos juntos somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco, não há nada a temer. Ao meu lado há um amigo que é preciso proteger...”
Com uma propriedade, vão aos poucos desistindo do ideal de ir para a Cidade, instalam-se por ali mesmo, organizando tarefas, e partilhando também os bens que a casa oferece, como a horta e a dispensa.
É a representação da retomada da propriedade privada, presente em movimentos de reforma agrária, por exemplo, ou em posturas como a dos punks em alguns locais do mundo, geralmente grande centros, que tomam prédios “abandonandos” criando squats, como há em muitas grandes cidades .
As mensagens transmitidas nas canções a uma criança são as mais diversas; refletem um espírito de união presente na figura dos animais, solidariedade e comunhão. Trazem arranjos musicais sofisticados, com profundas evoluções temáticas e efeitos de sonorozição, possibilitando a associação de várias partes da letra e da mensagem com nuances sonoras. Coreografias podem ser esboçadas quase que instantâneamente.
A própria tradução é privilegiada, com a poesia de Chico Buarque reverberando-se em onomatopéias diversas, imitando o som dos animais, dos passos na invasão da casa do Barão, etc. A obra musical é riquíssima nesse aspecto, propiciando a oportunidade de entender-se a história através da música: funciona como outra linguagem.


Por um resgate de Os Saltimbancos?

Com tantos aspectos positivos e ricos, pode-se chegar a uma primeira conclusão de que é necessário haver um resgate histórico dessa obra, tentando vinculá-la ao mercado em concorrência com os inúmeros dvd’s da Xuxa ou da Disney e propiciando uma alternativa de escolha com um produto cultural repleto de conteúdo.
Mesmo considerando a relevância da obra e a atualidade do tema, não se trata disso. A questão é como retormar produções de qualidade para um publico infantil, e como vinculá-las a um sistema de mercado em que as distribuidoras detém tanta força quanto as produtoras.
E, em se produzindo obras com referências à contra-cultura, cabe tentar situar onde está a arte enquanto potencial revolucionário, não exclusivamente panfletário, mas com possibilidade de enriquecimento cultural, entretenimento e diversão. Seguramente há diversas obras com esse potencial circulando nos meios musicais, literários, mas cabe colocar questões como: porque não ameaçam a soberania de impérios da indústria cultural destinado as crianças, como Xuxa Produções; e porque não são divulgadas entre as crianças como alternativa.
Se “Os Saltimbancos” ainda trazem uma mensagem atual, mesmo com tantas transformações na sociedade, é pelo caráter universal e atemporal que as só obras de arte relevantes podem possuir. Mas não se trata de promover seu resgate, e sim de usá-lo como ponto de partida para a busca de produções de nosso tempo que trazem em seu conteúdo mensagens condizentes com nossa época.
E é impossível especular sobre isso sem tocar na formação, no enriquecimento cultural do educador, do profissional que trabalha em creches ou em escolas de ensino infantil. Como diz Ostetto, “É necessário uma formação que contemple experiências estéticas capazes de revolverem o ser da poesia, presente e esquecido no professor”.
E que não se trata de sobrepor valores, como se Os Saltimbancos fossem realmente mais substanciais que “Xuxa e Os Doendes”, e por isso às crianças e educadores cabe o bom senso de discernir o que é melhor ou não para a educação infantil: Como conclui Ostetto, defendendo a ampliação do repertório cultural:
“Por isso não se trata de negar a entrada, na instituição educativa, de qualquer tipo de música trazida pelas crianças, porque seria como negar a história dessas crianças. Porém, não é também seguir o caminho da moda, as determinações do mercado de bens simbólicos. É, no mínimo, questionar tudo que aí chega e questionar não significa proceder a uma análise, de uma forma racional., explicativa, didática, demonstrando por “a mais b” como se dá a dominação e a alienação. É possibilitar a coexistência dos mais variados tipos de música, de modo a provocar o encontro e o debate de significados e sentidos – do estranhamento às entranhas do novo”. (p. 13)
E tão necessário como a formação do Educador, é que a sociedade permita o acesso a cultura também para os pais das crianças, para que outros pais possam ter a possibilidade de ofertar para sua filha um disco como Os Saltimbancos, não só por ter feito parte da infância do pai, mas por nele haver um conteúdo rico e com uma mensagem que prevalece atual. Veremos o que Yasmin vai achar.

BIBLIOGRAFIA

MENDRANO,E. M. e VALENTIM, L M: “A Indústria Cultural Invade a Escola Brasileira” Caderno Cedes, ano XXI, no. 54, agosto/2001

OSTETTO, L. E. “Mas as crianças gostam!” Ou sobre Gostos e Repertórios Musicais, CAPES/PICDT, ANPED 2003.

BUARQUE,C ; ENRIQUEZ, L e BARDOTTI, S. – Os Saltimbancos – Disco – Gravadora Phillips, 1977.

FREITAG, B “Política educacional e Indústria Cultural” – Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, 26, São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.

Resenha do livro: ESCRITOS SELECIONADOS EM SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIATRA

Resenha do livro
ESCRITOS SELECIONADOS EM SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIATRA
Franco Basaglia
Org. Paulo Amarante – Trad. Joana Angélica dÁvilla Melo
Rio de Janeiro, Garamond Universitária; Loucura XXI

Apresentação geral
O livro tem por objetivo, segundo o organizador, Paulo Amarante, o intuito de oferecer ao leitor uma visão do conjunto da obra de Basaglia. Os textos foram reunidos em ordem cronológica, apresentando uma visão histórica e evolutiva da trajetória de Basaglia.

-Pequena informação sobre o autor do texto.
Franco Basaglia era médico e psiquiatra, e foi o precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática. Nasceu no ano de 1924 em Veneza, Itália, e faleceu em 1980. Promoveu inúmeras reflexões no âmbito do processo de desmontagem das instituições manicomiais, escreveu e organizou um bom número de livros e publicou cerca de duzentos artigos e capítulos. Liderou as experiências de Gorizia ( de 1961 a 1968) e de Trieste (de 1971 a 1979).
Basaglia criticava a postura tradicional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica. No campo das relações entre a sociedade e a loucura, ele assumia uma posição crítica para com a psiquiatria clássica e hospitalar, por esta se centrar no princípio do isolamento do louco (a internação como modelo de tratamento), sendo, portanto excludente e repressora.
Em Trieste ele promoveu a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas (chamadas por ele de "grupos-apartamento") para os loucos.
No ano de 1973, a Organização Mundial de Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como principal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental.
Como conseqüência das ações e dos debates iniciados por Franco Basaglia, no ano de 1978 foi aprovada na Itália a chamada "Lei 180", ou "Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana", também conhecida popularmente como "Lei Basaglia".
Franco Basaglia esteve algumas vezes no Brasil realizando seminários e conferências. Suas idéias se constituíram em algumas das principais influências para o movimento pela Reforma Psiquiátrica no país.

Resenha:
Nessa coletânea de escritos, organizada por Paulo Amarante, estão dissecados muitos dos conceitos defendidos por Basaglia, bem como uma ampla contextualização da loucura no decorrer da história, desde sua “invenção”, passando pela hegemonia do saber psiquiátrico atrelado ao “suporte” judiciário (noção de periculosidade social) e aos paradigmas científicos da Razão Dominante.
Além de seus conceitos, está impressa boa parte de sua trajetória como trabalho técnico da reforma psiquiatra, as influências que tiveram essas re-configurações na Europa, e no mundo, além de comparações de serviços substitutivos, situados em diferentes sistemas econômicos (há referencias a como o modelo de atenção se dá em Cuba, por exemplo).
Foi de opção metodológica comentar os capítulos como um todo, apresentando conceitos num âmbito geral, dado que em muitos capítulos são abordados temas centrais, que podemos situar em: conceito de institucionalização; a doença sendo posta entre parênteses – e não o sujeito; sobre a psiquiatria e seus modos de opressão por intermédio da detenção de um saber, no que Basaglia mostra sua influencia das obras de Foucault; sobre o conceito de desvio e território, aspectos do planejamento e gestão de políticas públicas em saúde mental, e sobre lei e psiquiatria.
A historia da loucura, para Basaglia, se confunde com a própria história da razão. “A história da loucura é a história de um juízo e, portanto, da gradativa evolução dos valores, das regras, das crenças, dos sistemas de poder sobre os quais se fundamenta o grupo social e sobre os quais se inscrevem todos os fenômenos no processo de organização da vida associativa”(p. 259).
As definições para loucura se inscrevia no mundo mágico, religioso, ritualístico. No capítulo Loucura/Delírio, Basaglia aborda que os loucos, ou desprovidos de razão, eram na idade média confinados no cárcere, até que o médico francês Pinel quebra as correntes que os prendiam às masmorras e cria os hospitais para tratamento da loucura, inaugurando uma nova etapa em que a razão dominante, que era A Razão Humana, passa a impor à loucura sua própria linguagem. Separa-se a loucura da criminalidade, promovendo a reclusão do louco do cárcere ao manicômio.
“A sombra da transferência do louco do cárcere para o manicômio pesará sobre o próprio conceito de “doença mental”, porque a doença “transferida” foi identificada sobretudo nos atos delituosos cometidos por “insensatos” que a nova racionalidade começa a ver como irresponsáveis, considerando-os “doentes” e penetrar-lhes as zonas mais profundas, determinando aquela que se tornará, mais tarde, sua natureza essencial: a periculosidade social.” (265)
Basaglia procura, neste contexto, entender o papel da ciência atrelada às relações de poder, e com a psiquiatria cúmplice desse sistema, na medida em que ela vai adquirindo um corpo jurídico com uma nova fase organizativa dos estados na Europa, no inicio do século XIX.
E de situar como essa forma hegemônica de saber possibilitou com que o manicômio ou os hospitais psiquiátricos fossem se tornando ao longo dos anos, mais do que modelo de tratamento, depósitos de pessoas não aceitas pela sociedade, excluídas da vida social e de direito, onde perdiam toda sua autonomia e estavam sob a guarda tutelar de uma equipe em que o psiquiatra era o rei, o detentor do saber e tirano, e só a ele cabia as altas, a prescrição da liberdade. Mas, como se tratar, apresentar melhora, em uma instituição totalizante como um manicômio ?
Tem-se então uma situação em que o sujeito é posto entre parênteses e o médico ocupa-se da doença, “da pesquisa ideológica da doença mental”, ou, em outras palavras, de suas etiquetas. A psiquiatria democrática italiana busca inverter essa preposição, criando mecanismos substitutivos aos manicômios, centros de convivência, ambulatórios, e buscando suporte em mecanismos jurídicos que visam garantir a retomada da cidadania e autonomia do sujeito.
“Não pretendemos negar, porém, que o doente mental seja um doente. Entretanto graças às recentes reviravoltas de uma instituição psiquiátrica – o doente tem se revelado extremamente diverso daquilo que a instituição psiquiátrica e a própria psiquiatria consideram até hoje. Muitos sintomas com os quais ele foi etiquetado desaparecem quando desmoronam as estruturas às quais esses sintomas estavam estreitamente ligados”. (p. 76)
No capitulo Corpo e Instituição Basaglia continua explorando o tema da situação falimentar da psiquiatria asilar, onde esta ciência, constituída como metafísica dogmática, procura confirmar suas próprias hipóteses no corpo do doente. Com isso o doente passa a ver seu corpo na instituição, até atrofiar por completo sua capacidade de se reconhecer.
É o que é expresso na fábula do homem e da serpente, de origem oriental, citada por Basaglia para exemplificar esse processo: um homem dormia quando uma serpente entrou em sua boca e alojou-se em seu estômago, passando a lhe dar ordens; um dia foi embora, restituindo a liberdade ao homem, que passou a não saber mais o que fazer com ela.
Em As Instituições da Violência, Basaglia aborda como as instituições diversas, da família e da escola às prisões e manicômios justificam práticas de violência e exclusão, como conseqüência de finalidades educativas, no caso das primeiras, e da “culpa”e da “doença”, no caso das outras.
Basaglia faz um estudo da obra de Goffman, Manicômios, Prisões e Conventos, e adota como ferramenta alguns de seus conceitos, como instituição total, mortificação do eu, carreira moral, entre outros, que viriam a ser ferramentas preciosas em toda sua trajetória. Situa a mortificação do doente mental em uma instituição (total) por base nesses argumentos, e desenvolve a idéia em Corpo e Instituição, e em muitos outros capítulos.
Outra influência nos escritos de Basaglia é Jean Paul Sartre, que escreveu um artigo intitulado “Qu’est-ce la littèrature?” (O que é a literatura?), de onde Basaglia tirou o título “Che cos’e la psichiatria? (O que é a psiquiatria?), um artigo de 1967 em que o conceito de Sartre da fome de um menino para a literatura é transportado para a psiquiatria: o que faz um menino que tem fome diante de um livro? Para que há de lhe servir esse livro? Sartre propõe que não há como ter-se literatura nesse contexto, ou, que a fome do menino é a literatura. E Basaglia, em sua analogia com as práticas psiquiatras, vai delimitando suas propostas de que a psiquiatria há de ser ideológica, mas também política.
A conquista da liberdade do doente em uma comunidade aberta deve coincidir com a conquista da liberdade pessoal de um modo geral. Propõe a instalação de comunidades terapêuticas não como uma solução, mas como uma transição, na espera que a situação (sócio-cultural) evolua.
É interessante notar também como se arrasta a trajetória da ideologia psiquiatra, que atrelada ou alicerçada no conceito jurídico de periculosidade social, só encontra relativa transformação nos países vencedores da II Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra e França. Se antes a construção da loucura estava atrelada aos meios de produção – e o louco era um excluído, não produzia, não se encaixava nessa ética – por intermédio de uma lei sancionada pelo presidente Kennedy, em 1963, que reconhece o problema da saúde mental como problema eminentemente social, houve uma mudança do paradigma da loucura nos Estados Unidos: “Nos Estados Unidos, faz-se coincidir a ideologia do desvio como problema do desviante, indentificando o desvio “primário” (que corresponde à exclusão da produção” com um desvio “secundário”, de caráter ideológico: o estigma” (p.213).
O conceito de desvio é amplamente discutido em A Maioria Desviante, onde há a comparação de como essa absorção da cultura americana para o desvio secundário se deu. Entende-se desvio como o fato de indivíduos não participarem da produção, de pessoas que, por motivos diversos, (desvio como limitação de funções, devido a impossibilidade de um indivíduo com deficiência física ou mental, por exemplo; desvio como produto da falta de requisitos sociais necessários para ser aceito, ou desvio em pessoas que, por idade ou escolha são excluídos do intercâmbio social) perderam ou nunca tiveram uma força contratual.
Trata-se de outro conceito importante: o de poder de contratualidade. O louco, trancafiado em um asilo, não tem nenhum poder de contratualidade, de intercambio social, e sua reinserção junto à sociedade não pode deixar de contemplar medidas que garantam com que, aos poucos, ele vá readquirindo esse fluxo na sociedade.
Contudo o preço do estigma do doente é diferente em um país capitalista, desenvolvido, ocidental, de um outro lugar. Por isso Basaglia relativiza um convite de um professor que pedia que fosse tacado um programa de saúde mental para uma população de 100.000 habitantes, em um determinado lugar. É o que é abordado em A Utopia da Realidade. Nenhum projeto poderia ser eficiente se não almejasse transformações sócio-culturais:
“A utopia só pode existir no momento e que o homem tiver conseguido libertar-se da escravidão ideológica, de modo a exprimir as próprias necessidades numa realidade que, por isso mesmo, se revele constantemente contraditória e de natureza tal a conter os elementos que permitam superá-la.Só então se poderá falar da realidade como “o verdadeiro na prática” e de utopia como o elemento figurativo da possibilidade de transformação real desse “verdadeiro na prática” (p. 227).
Está implícito aí uma crítica ao projeto preventivo dos serviços psiquiátricos, que permanecem nas lógicas científica e econômica que respondeu e responde à doença mental como segregação. E dentro da referida proposta, corre-se o risco de dilatar a doença: “A tarefa de uma programação de saúde que deseje responder às necessidades reais é, portanto, a de indentificação e consciência do uso que explicitamente se faz da doença, de modo que os serviços projetados não sirvam para dilatá-la, e sim para reduzi-la”.
Postos esses argumentos e contextualizações de como se deu o paradigma da doença mental como causa social, cabe voltar ao capítulo “A Utopia da Realidade” e citar o exemplo de Cuba:
“Numa estrutura social diferente na qual a finalidade não seja a produção, mas o homem e suas condições de vida (restando a produção de um instrumento de sobrevivência), a inserção de um novo serviço técnico produz resultados opostos. Em Cuba, por exemplo, o serviço de saúde psiquiátrico funciona – além do grande hospital de Havana, em vias de desmantelamento – através da organização de pequenos centros ambulatoriais nas várias regiões da ilha. O número de pacientes mentais em tratamento ambulatorial que registrara um aumento no primeiro período dessa nova atividade, reduziu-se a seguir. Isso significa quem em Cuba a doença mental não existe, ou está regredindo velozmente? Certamente não. Trata-se apenas de um modo diferente pelo qual se pode dispor de um serviço numa estrutura social que visa responder às necessidades do homem, e não às exigências do capital. O que, mais uma vez, confirma o peso assumido pela face social da doença no determinismo da própria doença”.
Situando os referencias dessa maneira, pode-se ver como se deu o processo da Psquiatria Democrática Italiana, que em Trieste chegou a ter grande envolvimento por parte da comunidade tornando-se referência para as políticas de saúde mental para a Organização Mundial de Saúde, referencial esse adotado no Brasil com a instalação de um padrão de Centros de Atenção Psicossociais, que buscam descentralizar o serviço, antes hegemonicamente manicomial.
As experiências de Basaglia como coordenador de serviços e organizador de uma nova política de saúde mental na Itália, relatadas ao decorrer do livro, incluem a percepção da necessidade de todo um paradigma ideológico, cultural, e social, que passa por transformações sociais, ainda que postas sob o signo de utopias, e incluem, principalmente, a capacitação do material humano – equipe técnica – para lidar com a linguagem da loucura. É implícito aqui o conceito de territorialização, entendendo o território não como espaço geográfico, pura e simplesmente, mas como conjunto de nuances que permeiam o ambiente e suas relações: sociais, de poder, humanas.
Se desde a promulgação da lei italiana 180, ou Lei Basaglia, (cuja contextualização jurídica está presente no capítulo “ Lei e psiquiatria, uma análise das normas no campo psiquiátrico”, que faz um panorama em comparação às outras leis, promulgadas antes e durante a experiência italiana, como a americana, inglesa e francesa,) determinou-se a extinção dos manicômios no territorio italiano, o que, por um lado, poderia ser considerada uma vitória para Basaglia, por outro lado coloca um problema, em estabelecer que a reforma psiquiátrica esteja restrita a esse aspecto.
De um modo geral, os capítulos deixam bem claro que não se trata de acabar com manicômios, mas de subverter a ordem social, de um modo em que a voz da loucura possa ganhar seus próprios contornos, independente dos ouvidos científicos que lhe dão atenção, fármacos, verdades, contornos morais e exclusão.
Quem pode sintetizar melhor isso foram os surrealistas, em 1925, com um manifesto de artistas franceses que assinavam a “la revolution surréaliste”, cujo texto dirigido aos diretores dos manicômios, serve-nos de epígrafe e, assim se espera, de epitáfio: “Amanhã de manhã, na hora da visita, quando, sem nenhum dicionário, tentarem se comunicar com esses homens, queiram lembrar e reconhecer que, diante deles,os senhores tem uma única superioridade: a força”.