Saturday, December 31, 2005

Resenha do livro: ESCRITOS SELECIONADOS EM SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIATRA

Resenha do livro
ESCRITOS SELECIONADOS EM SAÚDE MENTAL E REFORMA PSIQUIATRA
Franco Basaglia
Org. Paulo Amarante – Trad. Joana Angélica dÁvilla Melo
Rio de Janeiro, Garamond Universitária; Loucura XXI

Apresentação geral
O livro tem por objetivo, segundo o organizador, Paulo Amarante, o intuito de oferecer ao leitor uma visão do conjunto da obra de Basaglia. Os textos foram reunidos em ordem cronológica, apresentando uma visão histórica e evolutiva da trajetória de Basaglia.

-Pequena informação sobre o autor do texto.
Franco Basaglia era médico e psiquiatra, e foi o precursor do movimento de reforma psiquiátrica italiano conhecido como Psiquiatria Democrática. Nasceu no ano de 1924 em Veneza, Itália, e faleceu em 1980. Promoveu inúmeras reflexões no âmbito do processo de desmontagem das instituições manicomiais, escreveu e organizou um bom número de livros e publicou cerca de duzentos artigos e capítulos. Liderou as experiências de Gorizia ( de 1961 a 1968) e de Trieste (de 1971 a 1979).
Basaglia criticava a postura tradicional da cultura médica, que transformava o indivíduo e seu corpo em meros objetos de intervenção clínica. No campo das relações entre a sociedade e a loucura, ele assumia uma posição crítica para com a psiquiatria clássica e hospitalar, por esta se centrar no princípio do isolamento do louco (a internação como modelo de tratamento), sendo, portanto excludente e repressora.
Em Trieste ele promoveu a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte serviços de atenção comunitários, emergências psiquiátricas em hospital geral, cooperativas de trabalho protegido, centros de convivência e moradias assistidas (chamadas por ele de "grupos-apartamento") para os loucos.
No ano de 1973, a Organização Mundial de Saúde (OMS) credenciou o Serviço Psiquiátrico de Trieste como principal referência mundial para uma reformulação da assistência em saúde mental.
Como conseqüência das ações e dos debates iniciados por Franco Basaglia, no ano de 1978 foi aprovada na Itália a chamada "Lei 180", ou "Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana", também conhecida popularmente como "Lei Basaglia".
Franco Basaglia esteve algumas vezes no Brasil realizando seminários e conferências. Suas idéias se constituíram em algumas das principais influências para o movimento pela Reforma Psiquiátrica no país.

Resenha:
Nessa coletânea de escritos, organizada por Paulo Amarante, estão dissecados muitos dos conceitos defendidos por Basaglia, bem como uma ampla contextualização da loucura no decorrer da história, desde sua “invenção”, passando pela hegemonia do saber psiquiátrico atrelado ao “suporte” judiciário (noção de periculosidade social) e aos paradigmas científicos da Razão Dominante.
Além de seus conceitos, está impressa boa parte de sua trajetória como trabalho técnico da reforma psiquiatra, as influências que tiveram essas re-configurações na Europa, e no mundo, além de comparações de serviços substitutivos, situados em diferentes sistemas econômicos (há referencias a como o modelo de atenção se dá em Cuba, por exemplo).
Foi de opção metodológica comentar os capítulos como um todo, apresentando conceitos num âmbito geral, dado que em muitos capítulos são abordados temas centrais, que podemos situar em: conceito de institucionalização; a doença sendo posta entre parênteses – e não o sujeito; sobre a psiquiatria e seus modos de opressão por intermédio da detenção de um saber, no que Basaglia mostra sua influencia das obras de Foucault; sobre o conceito de desvio e território, aspectos do planejamento e gestão de políticas públicas em saúde mental, e sobre lei e psiquiatria.
A historia da loucura, para Basaglia, se confunde com a própria história da razão. “A história da loucura é a história de um juízo e, portanto, da gradativa evolução dos valores, das regras, das crenças, dos sistemas de poder sobre os quais se fundamenta o grupo social e sobre os quais se inscrevem todos os fenômenos no processo de organização da vida associativa”(p. 259).
As definições para loucura se inscrevia no mundo mágico, religioso, ritualístico. No capítulo Loucura/Delírio, Basaglia aborda que os loucos, ou desprovidos de razão, eram na idade média confinados no cárcere, até que o médico francês Pinel quebra as correntes que os prendiam às masmorras e cria os hospitais para tratamento da loucura, inaugurando uma nova etapa em que a razão dominante, que era A Razão Humana, passa a impor à loucura sua própria linguagem. Separa-se a loucura da criminalidade, promovendo a reclusão do louco do cárcere ao manicômio.
“A sombra da transferência do louco do cárcere para o manicômio pesará sobre o próprio conceito de “doença mental”, porque a doença “transferida” foi identificada sobretudo nos atos delituosos cometidos por “insensatos” que a nova racionalidade começa a ver como irresponsáveis, considerando-os “doentes” e penetrar-lhes as zonas mais profundas, determinando aquela que se tornará, mais tarde, sua natureza essencial: a periculosidade social.” (265)
Basaglia procura, neste contexto, entender o papel da ciência atrelada às relações de poder, e com a psiquiatria cúmplice desse sistema, na medida em que ela vai adquirindo um corpo jurídico com uma nova fase organizativa dos estados na Europa, no inicio do século XIX.
E de situar como essa forma hegemônica de saber possibilitou com que o manicômio ou os hospitais psiquiátricos fossem se tornando ao longo dos anos, mais do que modelo de tratamento, depósitos de pessoas não aceitas pela sociedade, excluídas da vida social e de direito, onde perdiam toda sua autonomia e estavam sob a guarda tutelar de uma equipe em que o psiquiatra era o rei, o detentor do saber e tirano, e só a ele cabia as altas, a prescrição da liberdade. Mas, como se tratar, apresentar melhora, em uma instituição totalizante como um manicômio ?
Tem-se então uma situação em que o sujeito é posto entre parênteses e o médico ocupa-se da doença, “da pesquisa ideológica da doença mental”, ou, em outras palavras, de suas etiquetas. A psiquiatria democrática italiana busca inverter essa preposição, criando mecanismos substitutivos aos manicômios, centros de convivência, ambulatórios, e buscando suporte em mecanismos jurídicos que visam garantir a retomada da cidadania e autonomia do sujeito.
“Não pretendemos negar, porém, que o doente mental seja um doente. Entretanto graças às recentes reviravoltas de uma instituição psiquiátrica – o doente tem se revelado extremamente diverso daquilo que a instituição psiquiátrica e a própria psiquiatria consideram até hoje. Muitos sintomas com os quais ele foi etiquetado desaparecem quando desmoronam as estruturas às quais esses sintomas estavam estreitamente ligados”. (p. 76)
No capitulo Corpo e Instituição Basaglia continua explorando o tema da situação falimentar da psiquiatria asilar, onde esta ciência, constituída como metafísica dogmática, procura confirmar suas próprias hipóteses no corpo do doente. Com isso o doente passa a ver seu corpo na instituição, até atrofiar por completo sua capacidade de se reconhecer.
É o que é expresso na fábula do homem e da serpente, de origem oriental, citada por Basaglia para exemplificar esse processo: um homem dormia quando uma serpente entrou em sua boca e alojou-se em seu estômago, passando a lhe dar ordens; um dia foi embora, restituindo a liberdade ao homem, que passou a não saber mais o que fazer com ela.
Em As Instituições da Violência, Basaglia aborda como as instituições diversas, da família e da escola às prisões e manicômios justificam práticas de violência e exclusão, como conseqüência de finalidades educativas, no caso das primeiras, e da “culpa”e da “doença”, no caso das outras.
Basaglia faz um estudo da obra de Goffman, Manicômios, Prisões e Conventos, e adota como ferramenta alguns de seus conceitos, como instituição total, mortificação do eu, carreira moral, entre outros, que viriam a ser ferramentas preciosas em toda sua trajetória. Situa a mortificação do doente mental em uma instituição (total) por base nesses argumentos, e desenvolve a idéia em Corpo e Instituição, e em muitos outros capítulos.
Outra influência nos escritos de Basaglia é Jean Paul Sartre, que escreveu um artigo intitulado “Qu’est-ce la littèrature?” (O que é a literatura?), de onde Basaglia tirou o título “Che cos’e la psichiatria? (O que é a psiquiatria?), um artigo de 1967 em que o conceito de Sartre da fome de um menino para a literatura é transportado para a psiquiatria: o que faz um menino que tem fome diante de um livro? Para que há de lhe servir esse livro? Sartre propõe que não há como ter-se literatura nesse contexto, ou, que a fome do menino é a literatura. E Basaglia, em sua analogia com as práticas psiquiatras, vai delimitando suas propostas de que a psiquiatria há de ser ideológica, mas também política.
A conquista da liberdade do doente em uma comunidade aberta deve coincidir com a conquista da liberdade pessoal de um modo geral. Propõe a instalação de comunidades terapêuticas não como uma solução, mas como uma transição, na espera que a situação (sócio-cultural) evolua.
É interessante notar também como se arrasta a trajetória da ideologia psiquiatra, que atrelada ou alicerçada no conceito jurídico de periculosidade social, só encontra relativa transformação nos países vencedores da II Guerra Mundial, Estados Unidos, Inglaterra e França. Se antes a construção da loucura estava atrelada aos meios de produção – e o louco era um excluído, não produzia, não se encaixava nessa ética – por intermédio de uma lei sancionada pelo presidente Kennedy, em 1963, que reconhece o problema da saúde mental como problema eminentemente social, houve uma mudança do paradigma da loucura nos Estados Unidos: “Nos Estados Unidos, faz-se coincidir a ideologia do desvio como problema do desviante, indentificando o desvio “primário” (que corresponde à exclusão da produção” com um desvio “secundário”, de caráter ideológico: o estigma” (p.213).
O conceito de desvio é amplamente discutido em A Maioria Desviante, onde há a comparação de como essa absorção da cultura americana para o desvio secundário se deu. Entende-se desvio como o fato de indivíduos não participarem da produção, de pessoas que, por motivos diversos, (desvio como limitação de funções, devido a impossibilidade de um indivíduo com deficiência física ou mental, por exemplo; desvio como produto da falta de requisitos sociais necessários para ser aceito, ou desvio em pessoas que, por idade ou escolha são excluídos do intercâmbio social) perderam ou nunca tiveram uma força contratual.
Trata-se de outro conceito importante: o de poder de contratualidade. O louco, trancafiado em um asilo, não tem nenhum poder de contratualidade, de intercambio social, e sua reinserção junto à sociedade não pode deixar de contemplar medidas que garantam com que, aos poucos, ele vá readquirindo esse fluxo na sociedade.
Contudo o preço do estigma do doente é diferente em um país capitalista, desenvolvido, ocidental, de um outro lugar. Por isso Basaglia relativiza um convite de um professor que pedia que fosse tacado um programa de saúde mental para uma população de 100.000 habitantes, em um determinado lugar. É o que é abordado em A Utopia da Realidade. Nenhum projeto poderia ser eficiente se não almejasse transformações sócio-culturais:
“A utopia só pode existir no momento e que o homem tiver conseguido libertar-se da escravidão ideológica, de modo a exprimir as próprias necessidades numa realidade que, por isso mesmo, se revele constantemente contraditória e de natureza tal a conter os elementos que permitam superá-la.Só então se poderá falar da realidade como “o verdadeiro na prática” e de utopia como o elemento figurativo da possibilidade de transformação real desse “verdadeiro na prática” (p. 227).
Está implícito aí uma crítica ao projeto preventivo dos serviços psiquiátricos, que permanecem nas lógicas científica e econômica que respondeu e responde à doença mental como segregação. E dentro da referida proposta, corre-se o risco de dilatar a doença: “A tarefa de uma programação de saúde que deseje responder às necessidades reais é, portanto, a de indentificação e consciência do uso que explicitamente se faz da doença, de modo que os serviços projetados não sirvam para dilatá-la, e sim para reduzi-la”.
Postos esses argumentos e contextualizações de como se deu o paradigma da doença mental como causa social, cabe voltar ao capítulo “A Utopia da Realidade” e citar o exemplo de Cuba:
“Numa estrutura social diferente na qual a finalidade não seja a produção, mas o homem e suas condições de vida (restando a produção de um instrumento de sobrevivência), a inserção de um novo serviço técnico produz resultados opostos. Em Cuba, por exemplo, o serviço de saúde psiquiátrico funciona – além do grande hospital de Havana, em vias de desmantelamento – através da organização de pequenos centros ambulatoriais nas várias regiões da ilha. O número de pacientes mentais em tratamento ambulatorial que registrara um aumento no primeiro período dessa nova atividade, reduziu-se a seguir. Isso significa quem em Cuba a doença mental não existe, ou está regredindo velozmente? Certamente não. Trata-se apenas de um modo diferente pelo qual se pode dispor de um serviço numa estrutura social que visa responder às necessidades do homem, e não às exigências do capital. O que, mais uma vez, confirma o peso assumido pela face social da doença no determinismo da própria doença”.
Situando os referencias dessa maneira, pode-se ver como se deu o processo da Psquiatria Democrática Italiana, que em Trieste chegou a ter grande envolvimento por parte da comunidade tornando-se referência para as políticas de saúde mental para a Organização Mundial de Saúde, referencial esse adotado no Brasil com a instalação de um padrão de Centros de Atenção Psicossociais, que buscam descentralizar o serviço, antes hegemonicamente manicomial.
As experiências de Basaglia como coordenador de serviços e organizador de uma nova política de saúde mental na Itália, relatadas ao decorrer do livro, incluem a percepção da necessidade de todo um paradigma ideológico, cultural, e social, que passa por transformações sociais, ainda que postas sob o signo de utopias, e incluem, principalmente, a capacitação do material humano – equipe técnica – para lidar com a linguagem da loucura. É implícito aqui o conceito de territorialização, entendendo o território não como espaço geográfico, pura e simplesmente, mas como conjunto de nuances que permeiam o ambiente e suas relações: sociais, de poder, humanas.
Se desde a promulgação da lei italiana 180, ou Lei Basaglia, (cuja contextualização jurídica está presente no capítulo “ Lei e psiquiatria, uma análise das normas no campo psiquiátrico”, que faz um panorama em comparação às outras leis, promulgadas antes e durante a experiência italiana, como a americana, inglesa e francesa,) determinou-se a extinção dos manicômios no territorio italiano, o que, por um lado, poderia ser considerada uma vitória para Basaglia, por outro lado coloca um problema, em estabelecer que a reforma psiquiátrica esteja restrita a esse aspecto.
De um modo geral, os capítulos deixam bem claro que não se trata de acabar com manicômios, mas de subverter a ordem social, de um modo em que a voz da loucura possa ganhar seus próprios contornos, independente dos ouvidos científicos que lhe dão atenção, fármacos, verdades, contornos morais e exclusão.
Quem pode sintetizar melhor isso foram os surrealistas, em 1925, com um manifesto de artistas franceses que assinavam a “la revolution surréaliste”, cujo texto dirigido aos diretores dos manicômios, serve-nos de epígrafe e, assim se espera, de epitáfio: “Amanhã de manhã, na hora da visita, quando, sem nenhum dicionário, tentarem se comunicar com esses homens, queiram lembrar e reconhecer que, diante deles,os senhores tem uma única superioridade: a força”.

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