Saturday, December 31, 2005

BREVES COMENTÁRIOS A RESPEITO DA OBRA “OS SALTIMBANCOS”

BREVES COMENTÁRIOS A RESPEITO DA OBRA “OS SALTIMBANCOS”
Uma proposta de entretenimento infantil com pitadas de contra-cultura.

Em 1977 Chico Buarque de Holanda liderou um projeto audacioso: contar através de uma fábula musical – e adaptá-la ao momento histórico do Brasil – a obra dos irmãos Grimm, conhecida no mundo inteiro sob o título de “Os Saltimbancos”.
Para isso ele cuidou da parte da tradução e adpatação, deixando os arranjos por conta de Luiz Enriquez, que somados a um time que tinha Sergio Bardotti na direção musical e no texto, Sergio de Carvalho e o próprio Chico Buarque na produção, e com intérpretes de peso para as canções como Miucha, Ruy, Magro e Nara Leão, deu cor, forma, e um contorno político-social a obra dos irmãos Grimm, que durante toda uma geração foi visitada e revisitada, quer em formato musical, teatral ou cinematográfico (Vide Os Saltimbancos trapalhões, de Renato Aragão).
Mas, qual os motivos para abordar essa obra em um artigo de uma disciplina que visa a dar ênfase na formação de psicólogos para atuar na Educação Infantil? Como argumentar que uma obra de 28 anos atrás, época do início da abertura política, pode nos dias atuais concorrer com outras fascinantes mídias para o mundo infantil?
A idéia me surgiu por dois caminhos: primeiro enquanto pai (minha filha Yasmin tem um ano e quatro meses) e, segundo, despertado pela leitura de alguns textos da disciplina, que enfatizavam as transformações da abordagem educacional para crianças de zero a seis anos, no Brasil e no mundo, e, em especial, por dois textos que abordam o panorama cultural, ou a influência da indústria cultural nas creches e pré-escolas.
Em “Mas as crianças gostam! – Ou sobre gostos e repertórios musicais”, Luciana Esmeralda Ostetto traça um panorama de como músicas com apelo comercial são introduzidas na educação infantil, citando famigerados exemplos, como o de Xuxa, Kelly Key, Rouge, em que as crianças não só aprendem a canção, como também as respectivas coreografias.
Ostetto busca em suas memórias o percurso da aprendizagem de canções, com influências dos programas de rádio, que seus pais ouviam, passando pela aquisição de canções em missas, confrontando-os com os novos métodos utilizados pela industria cultural para seduzir e formar, desde cedo, pequenos e potenciais consumidores.
Músicas de sucesso são “fabricadas” mediante a uma forma e fôrmas já definidas pela indústria cultural, e navegam ao sabor do mercado, com a peculiaridade de serem produtos descartáveis.
Sobretudo, em um tempo onde o mantra do grupo formado por Silvio Santos entoado sobre a forma de “Aserehe ra de re/ Dehebe tu de hebere seibiunouba mahabi” já soa obsoleto, reflexo do aspecto descartável desse bem de consumo, lançar luz sobre uma obra de 28 anos atrás já é um sinal de resistência.
Em “A Industria Cultural Invade a Escola Brasileira”, de Eliziara Maria Oliveira Medrano e Lucy Mary Soares Valentim, aspectos de como a Industria Cultural vai ganhando cada vez mais espaço dentro das mais variadas áreas sociais são abordados.
As autoras citam Bárbara Freitag, que em uma leitura sobre autores que delimitam o conceito de Industria Cultural, como Adorno, Zuin, Ramos-de-Oliveira, afirma que “o produto (original ou reproduzido) da Industria Cultural visa entorpecer e cegar os homens da moderna sociedade de massa, ocupar e preencher o espaço vazio deixado para o lazer, para que não percebam a irracionalidade e a injustiça do sistema capitalista” (2001, p. 71).
E aponta meios midiáticos em que esses produtos são vinculados, com maior destaque para aquele que tem maior força no Brasil, a televisão. Contudo, aborda também outros meios de vinculação, inseridos nos materiais pedagógico-didáticos, consumidos por alunos de escolas, em especial, particulares, sob formatos de agendas, calendários, etc.
O que diriam os participantes d`Os Saltimbancos se soubessem que no futuro sua obra iria concorrer com esse contexto neo-liberal do capitalismo globalizado? Não se pode saber, mas decerto, já deixaram em sua obra muito do que precisava ser dito.







Os Saltimbancos – uma postura crítica em relação ao seu contexto histórico.

O disco d’Os Saltimbancos – que depois serviria de material para muitas adaptacões teatrais – em formato de LP chegou ao mercado brasileiro no ano de 1977. Nesse período a anistia política aos perseguidos pela ditadura estava começando a ganhar força, muitos artistas, pensadores, “formadores de opinião” estavam regressando ao país depois de tempos no exílio.
Junto com a eminente queda do regime dos militares, alicerçada na perspectiva de eleições diretas para presidência da república, e em todo um contexto mundial de pensamento político, que, ainda no auge da Guerra Fria, assistia a polarização entre o capitalismo e o socialismo, havia espaço mais que suficiente para os que estavam no rumo da contra-cultura disseminassem idéias e ideais de um modo alternativo de vida, ainda que calcadas em influências socialistas, tais como o fim da propriedade privada, a união proletária, camaradagem, e outros aspectos relacionados à política, e aspectos da cunho artísticos, com reflexos na música, teatro, artes visuais, etc.
Os Saltimbancos tem esse perfil em seu enredo, formado por quatro personagens centrais: O Jumento, a Galinha, o Cachorro e a Gata. Permite uma fácil assimilação pelo público infantil, para quem os animais podem representar figuras humanizadas .
No inicio da peça/ópera aparece o Jumento cantando sozinho, que “trabalha e não faz pirraça”, mas que “quando a carcaça ameaça rachar, que coices, que coices que (ele) dá”. É uma menção a exploração da força de trabalho do animal, que pode ser transportada facilmente para a exploração humana. O patrão dos animais, representando pela figura do Barão, que não aparece senão em terceira pessoa durante todo o enredo, é a simbolização da figura do capitalista, o patrão opressor. Ele não é acessível, não está presente, assim como não estão acessíveis as figuras que comandam o poder – seja ele político ou econômico. É a mão invisível do capitalismo.
O Jumento então encontra um cachorro que, condicionado pela forma de tratamento, mostra-se pronto, prestativo, pronto para servir o Jumento, como um gênio que, em liberto da garrafa, está pronto para servir ao seu amo: quando o Jumento, por exemplo, retruca que o cão não lhe deve obediência, pois o Jumento é um “pobre pau-de-arara”, o cão prontamente responde: “sim, senhor pau de arara”. E, em sua canção, descreve as atividades diárias e rotineiras de um cão: “apanhar a bola, estender a pata, sempre em equilíbrio, sempre em exercício”.
Os dois personagens encontram ainda a figura da Galinha, proletária de uma granja do Barão, em que a produção dos ovos e rigidamente controlada, com a galinha que não choca mais indo parar na granja (a Galinha usa metáforas que aludem ao cativeiro da granja com o Brasil nos tempos da ditadura: a gaiola é seu país).
Depois encontram a figura da Gata, onde nota-se toda uma configuração contra-cultural da personagem. A Gata é retratada como manhosa, fala gírias incompreensíveis, teve uma vida relativamente privilegiada, dormindo em almofadas e almoçando filés mignon, ou filés de gato, que eventualmente se envolvera em umas encrencas (em uma passagem como cantora). Ela é a representação da figura contra-cultural característica de uma época que ainda se inspirava nos movimentos de protesto sessentistas, como a dos participantes do movimento paz e amor, ou hippies Prega valores como a liberdade: “Nós gatos já nascemos pobres, porém já nascemos livres”.
Os quatro juntos decidem primeiramente fugir, formar um conjunto musical e ir para um outro lugar, um lugar mítico representado pela imagem da Cidade. E eles tem diferentes idealizações do que poderia vir a ser a cidade, como de fato é representado na canção homônima: “A cidade ideal do Cachorro, tem um poste por metro quadrado, não tem carro, não corro, não morro, e também nunca fico apertado”, assim com a cidade ideal para a Galinha teria muitas minhocas, etc.
O Jumento é, não por acaso, o animal mais consciente. Verificando a afinação vocal dos seus músicos, consta que o trabalho como um grupo musical não será tão fácil assim. Cansados, procuram pernoitar em uma pousada, que é a pousada do Barão. Então, ao verem que não seriam bem-vindos, somam suas forças e põe “o Barão pra correr”.
Uma vez tomado o território, apoderam-se da propriedade, dividem funções, traçam um plano de combate para um eventual retorno do Barão, que de fato ocorre, mas no qual os animais são bem sucedidos. Implícita e explícitamente está a mensagem de que a união faz a força: somadas as garras da Gata, o bico da Galinha, os coices do Jumento e aos dentes do Cão, expulsam de vez o Barão e assumem em definitivo a casa. “Todos juntos somos fortes, somos flecha e somos arco, todos nós no mesmo barco, não há nada a temer. Ao meu lado há um amigo que é preciso proteger...”
Com uma propriedade, vão aos poucos desistindo do ideal de ir para a Cidade, instalam-se por ali mesmo, organizando tarefas, e partilhando também os bens que a casa oferece, como a horta e a dispensa.
É a representação da retomada da propriedade privada, presente em movimentos de reforma agrária, por exemplo, ou em posturas como a dos punks em alguns locais do mundo, geralmente grande centros, que tomam prédios “abandonandos” criando squats, como há em muitas grandes cidades .
As mensagens transmitidas nas canções a uma criança são as mais diversas; refletem um espírito de união presente na figura dos animais, solidariedade e comunhão. Trazem arranjos musicais sofisticados, com profundas evoluções temáticas e efeitos de sonorozição, possibilitando a associação de várias partes da letra e da mensagem com nuances sonoras. Coreografias podem ser esboçadas quase que instantâneamente.
A própria tradução é privilegiada, com a poesia de Chico Buarque reverberando-se em onomatopéias diversas, imitando o som dos animais, dos passos na invasão da casa do Barão, etc. A obra musical é riquíssima nesse aspecto, propiciando a oportunidade de entender-se a história através da música: funciona como outra linguagem.


Por um resgate de Os Saltimbancos?

Com tantos aspectos positivos e ricos, pode-se chegar a uma primeira conclusão de que é necessário haver um resgate histórico dessa obra, tentando vinculá-la ao mercado em concorrência com os inúmeros dvd’s da Xuxa ou da Disney e propiciando uma alternativa de escolha com um produto cultural repleto de conteúdo.
Mesmo considerando a relevância da obra e a atualidade do tema, não se trata disso. A questão é como retormar produções de qualidade para um publico infantil, e como vinculá-las a um sistema de mercado em que as distribuidoras detém tanta força quanto as produtoras.
E, em se produzindo obras com referências à contra-cultura, cabe tentar situar onde está a arte enquanto potencial revolucionário, não exclusivamente panfletário, mas com possibilidade de enriquecimento cultural, entretenimento e diversão. Seguramente há diversas obras com esse potencial circulando nos meios musicais, literários, mas cabe colocar questões como: porque não ameaçam a soberania de impérios da indústria cultural destinado as crianças, como Xuxa Produções; e porque não são divulgadas entre as crianças como alternativa.
Se “Os Saltimbancos” ainda trazem uma mensagem atual, mesmo com tantas transformações na sociedade, é pelo caráter universal e atemporal que as só obras de arte relevantes podem possuir. Mas não se trata de promover seu resgate, e sim de usá-lo como ponto de partida para a busca de produções de nosso tempo que trazem em seu conteúdo mensagens condizentes com nossa época.
E é impossível especular sobre isso sem tocar na formação, no enriquecimento cultural do educador, do profissional que trabalha em creches ou em escolas de ensino infantil. Como diz Ostetto, “É necessário uma formação que contemple experiências estéticas capazes de revolverem o ser da poesia, presente e esquecido no professor”.
E que não se trata de sobrepor valores, como se Os Saltimbancos fossem realmente mais substanciais que “Xuxa e Os Doendes”, e por isso às crianças e educadores cabe o bom senso de discernir o que é melhor ou não para a educação infantil: Como conclui Ostetto, defendendo a ampliação do repertório cultural:
“Por isso não se trata de negar a entrada, na instituição educativa, de qualquer tipo de música trazida pelas crianças, porque seria como negar a história dessas crianças. Porém, não é também seguir o caminho da moda, as determinações do mercado de bens simbólicos. É, no mínimo, questionar tudo que aí chega e questionar não significa proceder a uma análise, de uma forma racional., explicativa, didática, demonstrando por “a mais b” como se dá a dominação e a alienação. É possibilitar a coexistência dos mais variados tipos de música, de modo a provocar o encontro e o debate de significados e sentidos – do estranhamento às entranhas do novo”. (p. 13)
E tão necessário como a formação do Educador, é que a sociedade permita o acesso a cultura também para os pais das crianças, para que outros pais possam ter a possibilidade de ofertar para sua filha um disco como Os Saltimbancos, não só por ter feito parte da infância do pai, mas por nele haver um conteúdo rico e com uma mensagem que prevalece atual. Veremos o que Yasmin vai achar.

BIBLIOGRAFIA

MENDRANO,E. M. e VALENTIM, L M: “A Indústria Cultural Invade a Escola Brasileira” Caderno Cedes, ano XXI, no. 54, agosto/2001

OSTETTO, L. E. “Mas as crianças gostam!” Ou sobre Gostos e Repertórios Musicais, CAPES/PICDT, ANPED 2003.

BUARQUE,C ; ENRIQUEZ, L e BARDOTTI, S. – Os Saltimbancos – Disco – Gravadora Phillips, 1977.

FREITAG, B “Política educacional e Indústria Cultural” – Coleção Polêmicas do Nosso Tempo, 26, São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.

1 Comments:

Blogger GaBiRuNoIdEx said...

Gostaria de reproduzir seu texto. Como podemos entrar em contato?

December 8, 2012 at 3:32 PM  

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